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Caminhos permeados por dogmas e por Ciência

Atualizado: 23 de ago. de 2018

Destituir a poderosa Ciência-Ocidental construída de novidades iluministas, um tanto individualista, impositora de verdades não é uma tarefa simples. Ela constantemente pede que copie e cole em cima daquilo que já está pronto. Qualquer aventura nesta hora seria muito perigosa: para quê mexer no que está estabilizado? Afinal, andamos a evitar algumas experiências para não correr risco de sofrimentos, muito embora já entende-se que esses supostos sofrimentos nada mais são do que perturbações na estrutura dos seres humanos, e que estas, justamente, são capazes de desenvolver processos de aprendizagem, uma vez que a própria estrutura humana se autoproduzirá para compensá-las.


Questionar a imutabilidade científica deveria ser normal, inclusive é um preceito básico da própria Ciência: não produzir nem proliferar dogmas. No entanto, a produção de subjetividade que parte de muitos cientistas (aqui incluem-se professores de Ciências), a partir de seus comportamentos e práticas, revela, muitas vezes uma contradição com a própria prática científica. Ainda mais numa escola. O problema é que determinados questionamentos que possam desenrolar novas formas de agenciamentos com o mundo atrasam o andar disciplinado e estabilizado das 80 horas/aula anuais e comprometem, ao final, a apoteose falida que é “vencer o conteúdo”.


“Perder o conteúdo”, quem sabe, seja capaz de engendrar uma revolta nesta hora, uma resistência, capaz de levar a sala de aula aos gabinetes, ao invés de burocratizar a Educação, levando o gabinete à sala de aula. Viabilizar rizomas entre os estudantes, fazer rizomas com projetos de outros professores, fazer Ciência, refutar Ciência. O que emerge nesse trâmite é nada mais que novos espaços híbridos, que possam articular espaços de tensões, mas não necessariamente medidos em Volts.


Pois nas aulas que participo, gosto sempre de iniciar qualquer caminho com alguma turma que entro para trabalhar Biologia ou Ciências tentando criar resistências a verdades absolutas. O estudante precisa entender que qualquer fenômeno que se observe é dotado de inúmeros pontos de vista, e que um conceito científico/biológico é um destes, sustentado pelo ponto de vista do protocolo científico, o que o torna consequentemente uma verdade refutável. Uma verdade refutável, falseável, é capaz de gerar (des/re)construção o tempo inteiro, e isso é importantíssimo, inclusive por vivermos tempos de microfascismos e atentados contra a ainda incipiente democracia. Nenhum ambiente pode constituir-se democrático se amparado em verdades absolutas, sejam elas provenientes do campo científico, religioso e moral. Muito embora a prática científica seja amparada pela falseabilidade, não podemos deixar de entender que está também permeada por estruturas de poder. E se, como professores de Ciência, queremos atuar promovendo verdades refutáveis, é fundamental que nossas práticas passem por destituir dogmas. Um deles é a relação de um poder vertical professor-aluno. No entanto, para além desta, não podemos ignorar que há uma rede de poder espalhada horizontalmente, muitas vezes de maneira silenciosa, pela turma quando se manifestam os homens, os heterossexuais, os que sabem, os engraçados, os retraídos, os tímidos, os negros, os reprovados etc. A relação vertical parece mais comum que se procure desfazer. Mas não vejo sentido de entenderem a diferença entre dogmas e verdades refutáveis, se não criarmos também resistências horizontais a dogmas identificáveis. Que acordos são feitos para os encontros? Existem tempos de fala ou domínios de fala na sala de aula? Os agrupamentos são homo-gêneros ou hetero-gêneros? Os tímidos o são por desejo ou por dogmas?


Em Biologia, o livro didático traz uma chuva de conceitos estabilizados que são trabalhados, muitas vezes, como única verdade sobre tal fenômeno que os originou. Não raras vezes, depois de serem compreendidos ou memorizados, passa-se à aula prática. Para, de uma vez por todas, comprová-los. Quer ver? Se apertar o balão, a pressão aumenta e o volume diminui. Olhe bem. Neste caso, o fenômeno toma forma de simples testemunho de sua própria explicação ocidental. Estes conceitos engessam-se nas aulas práticas assim como engessam-se na formação intelectual dos estudantes se simplesmente assim trabalhados. A saliva degrada amido. Na próxima aula, faremos um experimento que lhes mostrará isto, diria o professor.


A Escola, num genuíno processo de condução de almas, lamentavelmente oblitera a criatividade. Um ato criativo é também um ato de resistência. Criar, de certa forma, é também resistir. A resistência é um agenciamento que não diz respeito a evitar ou resistir a uma força que reprime desde fora. Desta perspectiva, tomada como agenciamento criativo, a resistência não é força contrária ao sistema educacional. Compor com a criatividade é indisciplinar-se, é resistir em boa medida aos dispositivos de aprisionamento e estabilização da vida. Facilitar esta resistência significa engendrar uma anarquia ontológica num espaço dialógico dentro de um ambiente como a sala de aula. Significa transformar uma monofonia, expressa por certos dogmas, em polifonia, composta pelas inúmeras vozes que se conectam em um espaço de aprendizado. Compor com a diversidade presente no ambiente escolar é multiplicar. Os diferentes tons de verde da grama existem para agradar a todos que nela possam deitar, por exemplo, – esta foi uma resposta de um estudante quando os perguntei por que será que haviam vários tons de verde na grama - coloca em xeque as percepções científicas ocidentais e traz novas possibilidades para os fenômenos interpretados pela Ciência.


O que proponho aqui, na verdade, é a possibilidade de enxergarmos os fenômenos como próprios fenômenos, e que estes deixem de ser testemunhos de si mesmos. Fenômenos que possibilitem inúmeras observações e ações a fim de libertá-los de certos preceitos biológicos ou não que balizam, no mais puro sentido de restringir, as tantas formas de abordar os conteúdos programáticos.



Referências e Sugestões bibliográficas

CUNHA, Claudia. A professora rizoma. 2002 (ARTIGO)

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1, São Paulo, Editora 34, 1995

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio, 1976

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977

GALO, Silvio. Em torno de uma educação menor. 2002 (ARTIGO)

GOLDMAN, Marcio. 1999. “O que Fazer com Selvagens, Bárbaros e Civilizados?” In Alguma Antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. (ARTIGO)

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

SCHLEMMER, Eliane; LOPES, Daniel de Queiroz ; ADAMS, T. . Educação, desenvolvimento e tecnologias. 1. ed. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2014. v. 1. 80p .

TADEI, Renzo. Altergeoengenharia - 2014 – Colóquio Os Mil Nomes de Gaia. (ARTIGO)

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify, 2010.

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