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Foto do escritorGilberto Cavalheiro

Epigenética e a Desconfiança a Respeito do Lamarckismo

Atualizado: 24 de ago. de 2018

O título desse texto é mais para chamar a atenção do que propriamente uma defesa das ideias evolutivas propostas por Lamarck, em que os organismos evoluiriam através alterações influenciadas pelo ambiente - o ambiente altera os organismos. Tal ideia é completamente diferente da seleção natural proposta por Darwin em 1859, onde os organismos seriam “selecionados pelo ambiente” – apesar de que Darwin utilizou da teoria de Lamarck para explicar uma série de observações. Claro que tal colocação, feita dessa maneira, é uma tentativa de sintetizar o cerne das ideias, portanto, não abrange a magnitude de ambas as teorias. É apenas uma forma didática de se “visualizar” a diferença existente entre a teoria evolutiva de Lamarck e a de Darwin.

Mas o que de fato faz com que eu venha chamar a atenção, e colocar o lamarckismo em pauta, é a desconfiança e a pouca informação, por parte de muitas pessoas (biólogos ou não) sobre a epigenética – principalmente para os evolucionistas enraizados dos princípios inerentes à Síntese Evolutiva Moderna (SEM). Para esses, falar de fenômenos epigenéticos é como reviver o lamarckismo, tal qual foi concebido por Lamarck. No entanto, a falta de conhecimento dessa área, relativamente nova da biologia, é o motivo principal dessas desconfianças.


A expressão epigenética surgiu em 1942 através dos estudos realizados por Conrad Waddington, que definiu epigenética como sendo o “estudo do processo pelo qual o genótipo dava origem ao fenótipo” (in Novik et al., 2002). Atualmente define-se epigenética como “o estudo das mudanças na expressão dos genes que são hereditárias através da mitose e/ou meiose e que não envolvem uma mudança na sequência do DNA, ou seja, uma mutação” (Wu and Morris,2001 in Novik). Vale destacar que epigenética não é o mesmo que epigênese, que é o processo pelo qual os organismos se desenvolvem através de diversos passos em que as células se diferenciam e a partir daí observa-se o surgimento de tecidos e órgãos (citodiferenciação e morfogênese).


Epigenética é um fenômeno comum nos mais diversos organismos. Entre os fenômenos epigenéticos que podemos citar, temos: o silenciamento de genes, a reprogramação, o imprinting genômico e a inativação de um dos cromossomos X em mamíferos. A mudança da expressão dos genes pode dar-se por diversos mecanismos, sem alterar as sequências nucleotídicas originais do DNA. A mesma sequência gênica pode ser expressa normalmente ou, simplesmente pode ser ter sua transcrição silenciada. Esses processos dependerão da conformação da cromatina através da acetilação das histonas, por exemplo, fazendo com que as proteínas transcricionais fiquem impedidas de acessar o conteúdo do DNA.


O mecanismo epigenético mais bem estudado é a metilação. A metilação nada mais é do que o acréscimo de um agrupamento metil no carbono 5 das citosinas do DNA (lembrando que o DNA é composto por Adeninas, Timinas, Guaninas e Citosinas). Nos mamíferos e alguns outros organismos, existem “ilhas” na região promotora do gene que repetem a sequência nucleotídica Citosina – Guanina diversas vezes, denominadas ilhas CpG (A letra “C” refere-se à citosina, o “p” faz menção à ligação fosfodiéster entre os nucleotídeos Citosina e Guanina e a letra “G”, logicamente, refere-se à guanina). Entretanto, em alguns invertebrados como em Drosophila (mosca-da-fruta), por exemplo, encontramos ao invés de ilhas CpG, metilação em dinucleotídeos CpA, CpT e CpC.


O fenômeno de metilação das citosinas do DNA do organismo resulta em um impedimento físico-químico, em que a alteração dos potenciais eletrostáticos da Citosina metilada impede com que a RNA-polimerase (enzima transcricional) junto com seus fatores transcricionais se liguem ao DNA apropriadamente. Por conseguinte, não se tem a produção de uma fita de RNA mensageiro, que seria posteriormente exportada do núcleo da célula para a sua tradução (no caso dos eucariontes). De maneira concisa procurei, até essa altura do texto, explicar do que trata a epigenética (estudo das alterações das expressões gênicas sem que para isso ocorram alterações nas sequências nucleotídicas do DNA).


As mudanças derivadas da epigenética estão intimamente ligadas às influências ambientais como a alimentação, a temperatura e/ou ataque de agentes patogênicos. Essas mudanças também estão relacionadas à diferenciação celular durante o processo de desenvolvimento embrionário. No momento em que há a fecundação do oócito II pelo espermatozoide e as informações genômicas paternas e maternas passam a fazer parte de um novo indivíduo, começa a ocorrer o processo de segmentação do zigoto, que irá se dividir em duas células idênticas, depois irá se dividir novamente em mais quatro células e assim sucessivamente. Eis então que surge a questão: se a informação genômica existente em cada célula do jovem embrião é idêntica, como essas células acabam acabam se diferenciando no decorrer do desenvolvimento e crescimento desse novo organismo nos mais diferentes tipos celulares?


A resposta para essa questão é relativamente simples, pois com o passar do tempo e após as sucessivas divisões celulares do embrião, o que irá diferenciar uma célula da outra será o silenciamento de determinados genes e ativação de outros, de acordo com a localização e função de cada célula. “Mecanismos epigenéticos, tais como a metilação do DNA, a acetilação e outras modificações covalentes das histonas, e os RNA de interferência (iRNAs), modelam a ativação dos genes e a sua inativação sendo poderosos reguladores da atividade dos genes, da transcrição do RNA e da homeostasia das proteínas” (Armandola,2004).



Em relação à influência ambiental, um bonito exemplo que se tem descrito é o caso da coloração do abdômen de Drosophila melanogaster. Essa coloração pode ser influenciada pela altitude e temperatura em que os organismos se encontram. Outro exemplo interessante e que está em estudo é o padrão de metilação diferenciado entre machos e fêmeas de Drosophila willistoni, que pode estar ligado a algum tipo de compensação de dose, algo semelhante ao que ocorre em mamíferos, onde as fêmeas têm um dos cromossomos X silenciados (já que possuem dois cromossomos X e os machos apenas um). Além disso, estudos epigenéticos trazem esclarecimentos e informações para possíveis diagnósticos sobre os processos carcinogênicos e outras patologias.


Dessa maneira, a epigenética está envolvida nos estudos de todas as mudanças reversíveis e herdáveis no genoma funcional, possuindo diversas funções em um organismo, desde a mudança de expressão espaço temporal de genes durante a diferenciação celular no desenvolvimento de um embrião, até mesmo a fatores ambientais que podem mudar a maneira como os genes são expressos, e é nesse ponto que alguns podem vir associar a ideia lamarckista, pois vem se acumulando cada vez mais evidências que demonstram que modificações nos padrões epigenéticos em um genoma (epigenoma) podem ser transmitidos aos descendentes através dos gametas dos pais.


A transmissão de marcas epigenéticas pode ocorrer de uma geração para outra geração, isso quer dizer que características adquiridas por influência ambiental (desde comportamental até mesmo alimentar, por exemplo) podem ser legadas à próxima geração de um dado organismo e persistir por diversas gerações, mesmo quando o fator ambiental não está mais presente.


Quando as células germinativas começam o seu desenvolvimento nos órgãos sexuais dos mamíferos, o genoma dessas células germinativas primordiais é reprogramado, ou seja, seu genoma é desmetilado, para logo em seguida ser remetilado de forma específica de acordo com o sexo, isso ocorre durante a determinação gonodal do sexo (Anway, M.D. 2005). Ao que tudo indica, essa remetilação depende do processo em conjunto com as células somáticas existentes nas gônadas. Entretanto, podem existir fatores ambientais que são capazes de influenciar a reprogramação epigenômica dessas células germinativas, promovendo dessa maneira a manutenção da metilação, que será transmissível para a próxima geração, quer através de transmissão materna ou paterna (Rakyan V. K.,2003). Essas alterações nas “marcas epigenéticas” (epimutações) podem ser transmitidas como uma memória do estado epigenético que existia nos progenitores.


Como apontei anteriormente, quando da fertilização e, por conseguinte segmentação do zigoto, cada tipo de célula futura do organismo terá sua marca epigenética, o que resultara no condicionamento de um determinado fenótipo. Não havendo nenhum tipo de anomalia, em condições normais de fertilização, diversas marcas genéticas dos gametas serão substituídas por marcações embriônicas, que promoveram os primeiros estágios desenvolvimento das células toti e pluripotentes. Contudo, no desenvolvimento das linhagens germinativas dos animais, os processos epigenéticos afetam este desenvolvimento, e os fatores ambientais podem influenciar os padrões epigenéticos (Armandola, E.,2004).


Estudos em ratos de laboratório verificaram que ratinhas mães que reduzem seu cuidado maternal com sua prole, acabam influenciando a metilação do DNA e a acetilação das histonas no sítio promotor de um gene responsável pela expressão de receptores corticosteroides. A diminuição desses receptores irá induzir uma maior concentração nos níveis de corticosteroides (hormônios associados à sinalização de estresse), levando ao indivíduo apresentar um maior grau de ansiedade. No entanto, nessa mesma prole que teve seus cuidados maternos diminuídos, pode-se restabelecer o padrão original de metilação e acetilação através de uma dieta alimentar que propicie condições influenciadoras em processos epigenéticos, diminuindo sua resposta anteriormente aumentada ao estresse. Os cuidados maternais podem, então, originar a transmissão de respostas adaptativas através das gerações (Weaver, I. C. G:,2004).


Já sabemos que no processo de gametogênese há a reprogramação genômica, assim como também ocorre na fertilização. Células germinativas primordiais com genoma reprogramado (de acordo com o sexo) à fertilização à nova reprogramação genômica, apagando os padrões de metilação das células germinativas e estabelecendo os padrões embrionários. No ratinho parece que a metilação do DNA e nos genes hereditários metilados (epialelos) não é apagada após a gametogênese ou no início da embriogênese, sugerindo que a metilação do DNA é uma marca herdada: mas há sugestões ainda de que não é apenas a metilação do DNA que é transmitida à geração seguinte, mas possivelmente uma combinação da metilação do DNA, modificações das histonas e RNA (Rakyan e Beck, 2006).


No caso, o RNA referido é o RNA-não codificador (ncRNA) que pode intervir, também, nesse fenômeno da memória epigenética herdável, pois existe a presença de RNA nos espermatozoides, fator que contribui na sustentabilidade da tese de que heranças epigenéticas podem ser transmitidas para gerações futuras. Os sncRNA (pequenos RNA não-codificantes) são potenciais vetores na interface entre genes e ambiente. Em recente estudo, Gapp e colaboradores (2014) verificaram que camundongos quando colocados em ambientes estressantes em estágios de vida iniciais tem a expressão de microRNAs (miRNA) alterada, afetando o comportamento e resposta metabólica na sua prole. Ao se injetar o RNA de espermatozoides de machos traumatizados em oócitos fertilizados, observou-se que esses filhotes, por mais que jamais tivessem sofrido e vivenciado os eventos estressantes do macho doador dos sncRNAs, apresentaram o mesmo comportamento e resposta metabólica como se tivessem experenciado tais traumas. Restava saber como tais informações epigenéticas seriam passadas do soma para a linha germinativa. Essa questão foi elucidada quanto Cosseti e colaboradores (2014) descreveram que tais sncRNAs podem ser transportados das células somáticas até as células germinativas em exossomos. Ou seja, a “barreira de Weismann” que propunha informações genéticas não podem passar do soma para a linhagem germinativa, tem buracos, pois se informações genéticas não podem passar, informações epigenéticas parecem estabelecer um íntimo intercâmbio.


A teoria de Lamarck diz que o ambiente é o fator preponderante que impulsiona a evolução ao criar situações que estimulem o aparecimento de características morfológicas indispensáveis para a sobrevivência do organismo. Basicamente podemos resumir em dois pontos a teoria de Lamarck: Lei do uso e desuso e herança das características adquiridas. A epigenética trata de compreender os mecanismos capazes de modificar os padrões de expressão dos genes sem envolver mudanças na sequência do DNA, e como foi descrito, tais epimutações podem ser herdáveis, sendo que essas mudanças epigenéticas podem ser influenciadas pelo ambiente.


Essa tratativa da epigenética é que leva alguns evolucionistas a torcerem o nariz a essa nova área. Mas está na hora de revermos nossos conceitos, não se trata de voltar a adotar o lamarckismo nos moldes em que ele foi elaborado, na verdade, se houvesse a possibilidade de reorganizarmos os fatos cronologicamente, o lamarckismo deveria ser colocado logo após o darwinismo de acordo com as descobertas recentes. Assim como darwinismo aplicado atualmente não é o mesmo daquele que se ergueu a partir da obra de Darwin. A reanálise dos conceitos pertinentes às diferentes teorias que envolvem a multiteoria evolucionista é um exercício de grande importância no meio científico.



(...) Se você analisar "A Origem das Espécies" e "Variações em Animais e Plantas sob Domesticação", verá que Darwin tinha uma teoria hereditária totalmente lamarckista. Hoje em dia dizer que alguém é lamarckista é chamar essa pessoa de estúpida, confusa e dizer que ela não sabe o que fala. Na história do lamarckismo há muitos charlatães, mas isso existiu também no darwinismo. A eugenia criou muitos horrores. Acho que chegamos ao ponto em que podemos dizer: "Veja, não vamos adotar o lamarckismo no sentido antigo". Claro que não. Mas há mecanismos que permitem que variações induzidas pelo desenvolvimento sejam herdadas. Quem não quiser chamar isso de lamarckismo, pode dar qualquer outro nome (...).” (Eva Jablonka)



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Cossetti C, Lugini L, Astrologo L, Saggio I, Fais S and Spadafora C (2014) Soma-to-germline transmission of RNA in mice xenografted with human tumour cells: Possible transport by exosomes. PLoS One. doi: 10.1371/journal.pone.0101629

D'Ávila MF, Garcia RN, Panzera Y, Valente VLS (2010) Sex-specific methylation in Drosophila: an investigation of the Sophophora subgenus. Genetica 138:907 -913.

Gapp K, Jawaid A, Sarkies P, Bohacek J, Pelczar P, Prados J, Farinelli L, Miska E and Mansuy IM (2014) Implication of sperm RNAs in transgenerational inheritance of the effects of early trauma in mice. Nat Neurosci 17:667–669. doi: 10.1038/nn.3695

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Novik NL, Nimmrich I, Genc B, Maier S, Piepenbrock C, Olek A, Beck S (2002). Epigenomics: genome-wide study of methylation phenomena. Curr. Issues Mol. Biol., 4:111-128.

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Weaver ICG, Cervoni N, Champagne FA, DÁlessio AC, Sharma S, SEckl JR, Dymov S, Szyf M, Meaney MJ (2004) Epigenetic programming by maternal behaviour. Nature Neuroscience, 7(8):847-85

Wolffe AP, Jones PL, Wade PA (1999) DNA demethylation. PNAS,96:5894-5896

http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=52173 acessado em 21 de fevereiro de 2011

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