Lucas Henrique Viscardi¹ & Fabrício Tabelião Degrandis²
Se você é interessado por evolução humana, então já sabe que nós viemos dos macacos...correto? Não! Errado! Nós temos um ancestral comum com estes nossos parentes distantes, especificamente com os chimpanzés e os bonobos; uma história de aproximadamente 9 milhões de anos! Hoje vamos nos ater a um tema que torna-se cada vez mais preocupante: o uso dos temas da evolução como um mecanismo de propaganda de novas dietas.
Vamos iniciar então a conversa com algo corriqueiro do nosso dia-a-dia: os nossos dentes.
Os caninos estão associados à uma alimentação carnívora?
É comum em algumas rodas de conversas ou papos de bar escutarmos afirmações em que nossos dentes caninos ali estão justificando nossa alimentação carnívora. Apesar dos carnívoros como cães e felinos apresentarem estas especializações em todo seu aparato mastigatório devido à esta estratégia alimentar, para os primatas isto não se aplica. Os caninos em primatas estão associados a algo bem longe da dieta: estratégia reprodutiva. A filogenia entre as espécies dos nossos ancestrais, os hominíneos, é repleta de controversas, mas duas espécies do gênero Australopithecus são fundamentais para o conhecimento evolutivo humano: o Australopithecus afarensis (famoso pelo espécime nomeado de Lucy) e o Australopithecus africanus (conhecido pelo espécime nomeado “menino de Taung”), que datam de aproximadamente 4-3.5 Milhões de anos. Nestes indivíduos é possível observar a redução do diastema ou diastemata, quando comparado com outros grandes primatas, como o chimpanzé e o gorila (Figura 1). O diastema é um espaçamento entre os incisivos e caninos, sendo proporcional ao tamanho do canino, que nele se acomoda. Em primatas os caninos são associados a um comportamento social de disputa entre machos por acesso às fêmeas. Dessa forma, sua redução nos Australopithecus indica que os grupos estão se tornando menos competitivos sexualmente do ponto de vista de confronto físico: possivelmente menos estratégias de haréns (um macho com muitas fêmeas) e mais poligamias (neste caso falando de muitos machos com muitas fêmeas e vice-versa) ou mesmo monogamias (seja de longo período ou curto; e.g. até período de independência infantil).
Porém, vamos voltar nossa atenção para a proposta inicial: dieta. Estes indivíduos apresentavam uma alimentação baseada em frutas e insetos. As ferramentas líticas, ou seja, de pedra, mais antigas conhecidas provém da Etiópia (McPherron et al. 2010) e Quênia (Harmand et al. 2015) com aproximadamente 3 milhões de anos, sugerem que estes ancestrais australopitecíneos já poderia suplementar sua dieta com carne.
Por volta de dois milhões de anos, há uma evolução na estratégia nutricional dos hominíneos, onde dois grupos originados dos Australopithecus optam por caminhos diferentes: os Paranthropus por uma dieta em gramas, tubérculos e capins (Sponheimer et al. 2006; Sponheimer et al. 2013); e os Homo que investiram na alimentação mais ampla e versátil com uma boa suplementação em carne, principalmente aquelas de carcaças abandonadas (Ungar 2012; Ungar et al. 2012). Quando teria se dado a origem da caça ainda é bem academicamente debatida, mas os registros são contextualizados com o Homo erectus (~2Ma). A referência é de que junto à origem desta espécie são encontrados a domesticação do fogo e as primeiras produções de lanças (Thieme 1997).
A adoção dessa dieta rica em carne acabou por levar a evolução de um aparato mastigatório mais delicado e menos volumoso, visto que se mutações que levassem à perda de musculatura dos músculos mastigatórios não seriam selecionadas, tendo se acumulado no ramo do gênero Homo, e provavelmente selecionado no ramo dos Paranthropus. Steadman e colaboradores identificaram que gene MYH16 – formador das cadeias de miosina expressas nos músculos mastigatórios masseter e temporal - está deletado na linhagem humana, o que corrobora a hipótese. Mas ainda mais interessante, é que isto permitiu com que fossem removida as constrições evolutivas de expandir o cérebro, além de estar em uma estratégia em que a gordura e proteína disponíveis permitiriam que o cérebro fosse sustentado (Stedman et al. 2004). A carne também incentivou uma maior sociabilidade devido à caça em grupo, especialmente entre machos dominantes, algo inclusivamente observado em chimpanzés (Fahy et al. 2013). É curioso observar que animais que forneceram carne - como mamutes, rinocerontes lanosos, veados, e outros - tornaram-se de fato os primeiros objetos conhecidos da arte animal durante o Paleolítico Superior (Rimas & Fraser, 2009).
Quanto aos Paranthropus sua alimentação é basicamente tubérculos e sementes, o que, apesar de eventualmente alimentarem-se de outros recursos de origem animal, não permitiria com que houvesse sustentação de um órgão tão despendicioso quanto o cérebro
Dentre a lista de alterações fisiológicas e morfológicas que o consumo da carne tem como consequência são: a morfologia do intestino, morfologia-crânio dental, co-evolução de certos parasitas, a capacidade baixa de produzir taurina e alongar ácidos-graxos de origem vegetal. Apesar de ter se tornado menos relevante após o período neolítico, a carne segue sendo uma fonte de extrema importância (Leroy and Praet 2015). Alguns experimentos tem inclusive sugerido que a suplementação de creatina presente na carne afeta beneficamente a saúde e função do cérebro (como a própria memória de trabalho), algo que é já está marcado no nosso genoma (Pfefferle et al. 2011; Allen 2012).
Como já comentado em publicações anteriores do blog, um exemplo que temos de impactos na evolução da dieta está a presença do apêndice, um órgão vestigial de uma região do intestino grosso reserva de bactérias fermentadoras, conhecido como caecum (ceco), responsável em ruminantes e primatas de alimentação mais baseada em vegetais pela fermentação de alimentos fibrosos (Mann 2007; ver tabela). Assim, é fácil entender o porque não uma microbiota capaz de uma forma efetiva processar a celulose. Apesar de hoje sermos onívoros, nossos ancestrais passaram por um período de dieta muito rica em alimentos de origem animal por volta de 2 milhões de anos atrás, bem como durante períodos das grandes glaciações. Essa estratégia evolutiva, acabou por impactar em uma redução no tamanho do nosso intestino grosso e das câmaras estomacais, e de um alongamento no nosso intestino delgado, onde teremos mais aproveitamento de recursos proteicos de origem animal (Ver tabela; Mann 2007). Então, não apenas nossa morfologia intestinal passou por mudanças como também nossa microbiota. Estudos recentes mostraram que desde que nosso corpo adaptou-se à uma alimentação mais carnívora nossa microbiota modificou-se para microbiota voltada mais para quebra de proteínas, como reduziu o repertório em volume e espécies para outras dietas, o que poderia estar associado com problemas da modernidade doenças gastrointestinais, obesidade e doenças autoimunes (Moeller et al. 2014). Estudos antropológicos de caçadores-coletores, demonstram que a maioria dos grupos étnicos baseia-se em torno de 65% de recursos de origem animal (Cordain et al. 2005).
Então, você deve estar pensando: “As dietas ditas como do paleolítico apresentam os melhores suportes evolutivos para ser um sucesso!”. Bem.. isso não é verdade. Em nenhum momento pudemos dizer que fomos ou somos restritamente adaptados para uma alimentação carnívora. Não somente fibras são importantes como existem nutrientes que passaram por processo evolutivo ainda mais antigo, como a ausência da autoprodução de vitamina C em primatas de forma geral devido à termos sempre extraído do ambiente esta vitamina, como frutos (Drouin et al. 2011). Mas ainda mais importante do que tentar encontrar as semelhanças de dietas ao longo da evolução humana é compreender que justamente por sermos uma espécie amplamente distribuída encontra-se nossa capacidade de processar diversos alimentos seja por sermos onívoros ou por utilizarmos tecnologia para isso (como cozinhar os alimentos). Assim, não existe estudos antropológicos ou etnográficos que mostrem singularidades e uniformidades na dieta de caçadores coletores (Cordain et al. 2005) para que assim possamos falar em dietas paleolíticas propriamente ditas. Cada populações apresenta sua peculiaridade e está relacionada justamente aos milênios de adaptação os quais a seleção atuou sobre uma gama de fenótipos. A tolerância a lactose associado ao gene LCT, por exemplo, fora o gene mais rapidamente selecionados na história da humanidade associado à adaptação diante da domesticação do gado (num período entre 5 e 10 mil anos atrás), onde alelo tolerante foi praticamente fixado (Bersaglieri et al. 2004).
Em suma, apesar das dietas da modernidade se basearam em uma imagem de caçador do paleolítico - e em parte estar certa em sua importância para evolução humana – os hominíneos nunca foram exclusivamente carnívoros. As alimentações sempre contaram com a coleta de frutos, sementes e pequenos insetos, répteis e anfíbios. Nosso sistema digestório de forma geral está mais próximo de um carnívoro do que de um herbívoro, porém isso não é o mesmo que dizer que devemos nos restringir à carne. Além disso, as diversas histórias de cada etnia acabaram por contribuir para uma dieta personalizada para cada indivíduo dependendo de sua história genética. Há 6 mil anos atrás, intolerantes à lactose na Europa e celíacos no oriente médio estariam em grande desvantagem comparado aos tolerantes e aos recursos citados que lá se desenvolveram. Assim, apesar de clichê, não se deve fazer dietas sem o profundo estudo do seu biótipo e herança genética, o que torna claro a necessidade do acompanhamento profissional.
As dietas da modernidade
Atualmente recebemos muitas informações vindas de redes sociais ou até mesmo de textos pseudocientíficos, onde principalmente se atribui o fator evolução humana com o de baixo consumo de carboidratos, o que conforme vimos anteriormente não funciona desse jeito, onde a humanidade passou por diversas fontes alimentares em escassez ou em abundância, variando desde o consumo de insetos até tubérculos e raízes.
De fato, em algumas ocasiões especificas há benefícios advindos de uma diminuição de carboidratos, principalmente os refinados, o que levou muitas pessoas a adquirem ou tentarem justificar hábitos nada saudáveis com base na evolução: a exemplo dietas carnívoras onde o consumo de proteínas e gorduras se torna abundante sem considerar fatores de promoção de saúde como o consumo de vegetais, legumes e frutas etc.
O grande equívoco começa quando se justifica que problemas com marcadores bioquímicos como colesterol total e frações não seria um fator prejudicial. Tomamos como exemplo as lipoproteínas, que fazem o transporte de colesterol: ao observarmos tais fatores como a elevação de lipoproteínas de baixa densidade (LDL) que pode acontecer principalmente pelo consumo excessivo de gorduras saturadas e carboidratos refinados na dieta; e diminuição de lipoproteínas de alta densidade (HDL), estes são tratados como risco pra maior formação das chamadas placa de ateroma. A presença dessas placas eleva o risco cardiovascular, principalmente pelo processo de oxidação do LDL e a inflamação crônica visto corriqueiramente nos casos de obesidade e síndrome metabólica.
Muito se questiona se de fato o LDL pode ser um fator de risco para doença cardiovascular. Para elucidar isso alguns estudos com boa reprodutibilidade foram feitos ao longo dos anos como uma metanálise feita por Baigent e colaboradores (2010), onde numa analise de 26 estudos e 170 mil pessoas verificou-se que a redução de LDL estaria associada com a redução de eventos vasculares (Acidente Vascular Encefálico e Ataque Cardíaco a exemplo) em mais de 1/5. Na mesma linha, um grupo de pesquisadores publicou em 2016 (Silverman et al., 2016) uma pesquisa envolvendo 46 estudos e mais de 300 mil participantes onde o nível de LDL foi significativamente associado a eventos coronarianos. Ainda, outra metanálise com 90 mil pacientes utilizando ou não estatinas a diminuição de cerca de 40 mg/DL de LDL representou uma diminuição de mais de 20% nos riscos para eventos cardiovasculares (CTT, 2005). Se olharmos de um ponto de vista mais abrangente podemos facilmente analisar o porque de tantos problemas em uma dieta rica em carne. Normalmente não sobra espaço para outros alimentos fundamentais na composição de uma dieta: cito aqui – frutas, vegetais, legumes, grão integrais e tantos outros, o que eles têm em comum? FIBRAS, ANTIOXIDANTES E FITOQUIMICOS! Tanto que o importante grupo de pesquisa de Dagfinn Aune trouxe pra gente uma das pesquisas mais difundidas pela mídia brasileira! A importante associação entre o consumo de frutas, vegetais e legumes e o risco de doenças cardiovasculares, câncer, etc. Por exemplo, o grupo viu que o consumo de cerca de 800g de frutas, legumes e vegetais estaria associado à uma diminuição de mais de 30% no risco de morte prematura; 28% no risco de doença cardiovascular e 13% no risco de câncer! (Aune et al., 2017)
O consumo adequado de fibras sempre parece ser um fator de proteção contra diversos tipos de doenças, tanto pelo fator da fibra em si como pelo circunstância de que uma dieta rica em fibras normalmente aumenta a ingestão de compostos biologicamente ativos como antioxidantes e fitoquímicos. Na proteção de doença cardiovascular uma gama de estudos sugere que elas podem apresentar benefícios na redução de marcadores de cardiopatia, como proteína c reativa e pressão arterial (Liu et al., 2019; Theuwissen; Mensink, 2008). Também mostrando efeito de redução de marcadores como LDL e Triglicerídeos, colaborando com diminuição de efeitos da Síndrome Metabólica (Hannon et al., 2018)
O consumo regular de fibras é capaz de atenuar a taxa de absorção de glicose também colaborando na prevenção do diabetes, o que é sustentado inclusive por grandes estudos de coorte (Hopping et al., 2010). E mais atualmente discutido, é observado também melhora em marcadores como resistência insulínica representando benefícios cardiometabólicos significativos (Dong et al., 2018; Provost et al., 2019). É fator de prevenção também da obesidade e ajuda no emagrecimento seja por controle do apetite e saciedade (Slavin et al., 2007; Jarrar et al., 2019) e também por dietas mais ricas em fibras estarem associadas com menor ingestão energética e consequentemente diminuição do peso (Miketinas et al., 2019).
Resumindo, não há justificativa na evolução para comermos carnes em excesso. Bem como não ha justificativa evolutiva para se comer nada em excesso. A diminuição do consumo de fibras, antioxidantes e fitoquimicos visto principalmente nas chamadas atualmente de dietas carnívoras podem levar a prejuízos na saúde. Há como fazer dietas pobres em carboidrato, mas com correção e ajuste no consumo correto de outros macros e também micronutrientes. A adição de alimentos ricos em fibras e que possam regular o perfil de lipídio sempre é uma boa opção, como farelo de aveia, cereais integrais. A diminuição de açúcar e gordura saturada também é uma estratégia inteligente, bem como moderação no consumo de álcool, praticar exercícios físicos e consumir porções adequadas de frutas, legumes e vegetais. Vocês percebem como as diretrizes e recomendações em si não mudam? Não caia em modismos e papo furado, procure um nutricionista.
Sobre os autores:
1. Arqueólogo, mestre e doutor em genética e biologia molecular. Atualmente é estudante de medicina;
2. Nutricionista, profissional de educação física, especialista em fisiologia e exercício, saúde do envelhecimento. Atualmente é mestrando em nutrição.
Referências
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