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O problema das espécies: questões empíricas e filosóficas

Atualizado: 24 de ago. de 2018

Texto de Aline Maciel*


Um dos debates fundamentais dentro da Filosofia e da Biologia é conhecido como “o problema das espécies”. A discussão envolvendo as espécies é longa e vem somando diversos livros e artigos publicados nas últimas décadas (Mayr, 1982; Ghiselin, 1987; Cracraft, 1989; Mayden, 1997; Hey, 2001; e outros). O desacordo existe por dois motivos, o primeiro quanto à definição da espécie, ou seja, de que maneira devemos dividir a biodiversidade; o segundo refere-se à realidade da espécie como categoria, se ela é uma categoria real ou é o reflexo de como enxergamos a natureza.


Para entendermos um pouco da história do problema vamos voltar no tempo, mais exatamente na Grécia Antiga. O termo utilizado para se referir à espécie era eidos, podendo também ser traduzido como forma, tipo ou essência. Estruturado na doutrina essencialista desenvolvida por Platão e Aristóteles, segundo a qual os particulares possuem algumas propriedades essenciais que são compartilhadas por todos e somente os membros de determinado grupo. Naquela época, o pensamento predominante era de que Deus havia criado as espécies e uma essência eterna para cada uma delas, sendo assim, elas eram entidades imutáveis. Referidas como “tipos naturais” com essências, a identificação dos grupos de organismos era feita a partir da observação das características morfológicas, ficando conhecida como Conceito Tipológico.



Figura 1. População de Heliconius erato phyllis. Um indivíduo da mesma espécie apresenta um padrão de coloração da asa diferente, enquanto um indivíduo de outra espécie (canto direito - Eresia lansdorfi) apresenta o mesmo padrão de coloração dessa população.

Um dos problemas desse conceito, fundamentado no essencialismo, surge por não levar em conta as variações que ocorrem dentro das populações. De acordo com o pensamento essencialista a espécie possui propriedades essenciais e eternas. No exemplo hipotético acima, se um indivíduo dentro de uma população não apresenta a característica dita essencial (mancha amarela em uma das asas posteriores), ele não seria reconhecido como pertencente àquele grupo, enquanto que um organismo que mesmo sem pertencer à espécie apresentasse a característica essencial, aqui no exemplo o padrão de coloração das asas, seria agrupado como membro desse grupo levando a classificações errôneas.


O essencialismo juntamente com a cultura cristã auxiliou a permanência de um conceito estático de espécie por longos anos. O primeiro a dar uma definição para a espécie inteiramente dentro do contexto biológico foi o naturalista inglês John Ray (1627-1705). Ele definia a espécie como a unidade que se reproduz dentro de seus limites, trazendo a ideia de descendência comum na qual a progênie se assemelha a seus pais. Outros pensadores da época como Augustin de Candolle (1778-1841) e Carolous Linnaeus (1707-1778) também seguiram ideias fixistas, trabalhando com um conceito estático de espécie. A partir de observações de seus experimentos, Linnaeus chegou a afirmar que algumas espécies e gêneros poderiam surgir por hibridização Lentamente, a partir do século XIX, uma série de outros pensadores passou a admitir a ideia da substituição gradual das espécies por outras, por meio de adaptações aos ambientes em contínuo processo de mudança. Um representante dessas ideias transformistas foi Jean Baptiste Lamarck (1744-1829).


Ainda assim a taxonomia permaneceu essencialista, foi a partir do desenvolvimento da Teoria da Evolução que o conceito de espécie começou a tomar outra forma. Os trabalhos de Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) suplantaram as ideias essencialistas apresentando os fundamentos teóricos e a evidência empírica de que as espécies não eram imutáveis. Esses trabalhos serviram de base para o debate sobre o problema da espécie através da introdução de conceitos como gradualismo, seleção e adaptação. Essa mudança de paradigma só foi possível graças à introdução do pensamento populacional, admitindo a variação dentro e entre diferentes populações em diferentes localidades geográficas, sugerindo assim que não há um único conjunto de propriedades associadas a todos os membros de uma espécie em qualquer momento particular. A partir daqui as espécies poderiam ser entendidas como linhagens que mudam ao longo do tempo.


Até 1920 havia grande oposição ao Darwinismo, os principais livros de evolução discutiam os problemas evolutivos em poucas páginas. Dois autores foram essenciais para que houvesse uma verdadeira mudança: Theodosius Dobzhansky (1900-1975) e Ernst Mayr (1904-2005), conhecidos pelo desenvolvimento da Síntese Evolutiva. Entre os anos de 1930 e 1940 esses autores desenvolveram o Conceito Biológico de Espécie, que até hoje gera diversos debates. Os trabalhos desses dois autores possibilitou um melhor entendimento sobre os processos evolutivos em termos genéticos, assim, colaborando para os avanços na biologia evolutiva. Dessa forma, a Síntese Evolutiva marcou o período do surgimento de novos conceitos e debates a respeito das espécies.


O Problema

Primeiramente devemos entender a ambiguidade do termo espécie, o qual se refere tanto à categoria espécie, como aos táxons que compõem essa categoria. O táxon são os indivíduos que pertencem à determinada espécie, por exemplo, Equus zebra é um táxon espécie. Já a categoria espécie são todos os táxons espécies, é um nível da classificação Lineana, como exemplificado na figura abaixo:

Figura 2. Relações de parentesco e classificação de algumas espécies da ordem Perissodactyla. Retirada de AMABIS & MARTHO, 2007.

Além da ambiguidade do termo, outra questão contribuindo para o problema é a diferenciação entre o conceito e a delimitação. O que são espécies é diferente de como identificar uma espécie, que pode ser, por exemplo, através da morfologia, ou do DNA, ou ainda através da ecologia. Quando perguntamos o que é a categoria espécie estamos nos referindo ao conceito, ou seja, o que define uma espécie, e para responder isso precisamos identificar o conjunto de condições necessárias e suficientes que supostamente os membros do grupo satisfazem. Já quando falamos na delimitação de um agrupamento que se deseja incluir na categoria espécie, estamos falando nos critérios que serão usados para identificá-los como espécie. Essa questão está diretamente relacionada com o problema em si, como veremos em seguida.


Como dito anteriormente, o desacordo que leva o nome de “problema das espécies” está associado com a realidade da categoria e com a definição do conceito de espécie. Quanto à realidade, existem duas posições: o nominalismo e o realismo. De acordo com a primeira as espécies não são reais, apenas os indivíduos que a formam têm realidade, mas a categoria não, desse modo, não existiria um meio correto de agrupar os organismos. Os que se opõem a essa visão, os realistas, afirmam que a categoria espécie é real, existindo uma maneira única e correta de agrupar os organismos.


A natureza não é um contínuo de um indivíduo a outro, geralmente representa padrões descontínuos de diversidade sendo dividida em entidades que chamamos de espécies. A maneira como agrupamos a biodiversidade se tornou uma das grandes questões dentro da Biologia, fazendo com que o “problema das espécies” se tornasse um dos debates mais longos e ainda sem solução. Um conceito popular é de que as espécies são grupos distintos de organismos individuais mais ou menos similares em aparência e comportamento, e que eventualmente reproduzem. Esse conceito, baseado no Conceito Biológico, não leva em consideração os organismos de reprodução assexuada, muito menos a possibilidade de espécies diferentes se reproduzirem. Existem diversos exemplos de zonas de hibridação onde populações geneticamente distintas se encontram e produzem híbridos, como por exemplo, a fêmea da espécie Ctenomys minutus e o macho da espécie Ctenomys lami, que se encontram na planície costeira do Rio Grande do Sul e podem gerar híbridos férteis (Gava e Freitas, 2003; Freitas, 2006).


Para lidar com as limitações do Conceito Biológico outros conceitos começaram a surgir, cada um com suas especificidades, e usando diferentes critérios como propriedade definidora da espécie. Hoje podemos contabilizar em torno de 30 conceitos de espécie (Mayden, 1997; Wilkins, 2009), muito deles semelhantes entre si, alguns mais teóricos, outros mais operacionais. Dentre estes estão conceitos filogenéticos, ecológicos, genéticos, cladísticos, evolutivos e morfológicos. Cada qual com suas vantagens e limitações. Visto a quantidade de conceitos existentes uma questão que surge é: o conceito deve ser geral e universal? Precisamos nos perguntar o que causa esses agrupamentos e se essas causas possuem um aspecto unificador ou não.


Para tentar responder essa questão existem dois conceitos opostos: o monismo e o pluralismo. O primeiro afirma haver uma única maneira de agrupar as espécies, para eles se a categoria não tem universalidade, ela passa a ser uma construção artificial. Já para os pluralistas não existe uma maneira única de agrupar as espécies, dois ou mais critérios podem contribuir para a questão, diferentes conceitos podem ser aplicados em diferentes táxons, dado que os fatores ou características cruciais nem sempre são os mesmos no transcurso da evolução de cada táxon.


Um possível acordo pluralista foi desenvolvido por De Queiroz (1998), denominado conceito de Linhagem Geral. De Queiroz busca nos conceitos existentes um elemento comum, de acordo com o autor todos os conceitos tratam as espécies como um segmento de uma linhagem que evoluem separadamente, portanto essa seria a propriedade primária do conceito. Ele apresenta uma linhagem se dividindo em duas ao longo do tempo e afirma que o desacordo acontece no momento de divergência da linhagem devido à natureza do processo, pois dependendo do critério utilizado a delimitação da espécie pode ocorrer mais cedo, por exemplo, ao se utilizar conceitos morfológicos, ou mais tarde, ao se utilizar conceitos de isolamento reprodutivo. Essas diferentes propriedades seriam secundárias no conceito. Assim, existe um conceito que é a propriedade primária, e os outros conceitos são na verdade, critérios de identificação. Algumas críticas ao conceito são que ele é muito amplo e subjetivo; nem toda linhagem será uma espécie, visto que famílias também formam linhagens; e na prática, é difícil decidir quais subpopulações formam uma metapopulação. Assim, ser uma linhagem populacional não seria suficiente para ser uma espécie, além do mais, também não supera o pluralismo (para aqueles que preferem uma visão monista).


Um dos objetivos ao abordar o debate sobre o problema das espécies é buscar conceitos que satisfaçam o que entendemos por espécie, que admitam a variação, a diferenciação, e a mudança, os quais são fatores intrínsecos dessa categoria. A evolução é um processo contínuo que segue por caminhos distintos, afetando diferentemente os organismos, sua morfologia, genética, comportamento, fisiologia, ou seja, as mudanças não ocorrem ao mesmo tempo, nem da mesma maneira em todas as populações. Logo, não é possível aplicar todos os critérios de reconhecimento das espécies a todas elas devido ao grau de aplicabilidade e empiricismo próprio de cada conceito. Devemos então aceitar as ambiguidades inerentes aos limites das espécies, tendo em mente que o conceito de espécie vai além dos métodos operacionais para identificar as espécies na natureza. Muito importante para entender a questão é reconhecer que o “problema das espécies” não é tanto empírico, é em grande parte filosófico, segundo Pigliucci (2003) é muito mais uma questão filosófica que requer a informação empírica fornecida pela ciência para ser resolvida, do que um problema científico com características filosóficas indesejáveis (p.596).


As espécies são de importância para diversas áreas de estudo, a sua definição tem implicação para a teoria e para a prática biológica. Dependendo do conceito utilizado podemos subestimar ou superestimar o número de espécies, um estudo mostrou que a mudança para um conceito filogenético multiplicou de 15 para 140 espécies de anfíbios em uma determinada localidade (MacLaurin and Sterelny, 2008). Isso afeta diretamente o programa de proteção às espécies, os trabalhos de reprodução em cativeiro, e os esforços de reintrodução da fauna. A espécie é um dos níveis de integração mais básicos de diversos ramos da biologia, como a sistemática, genética, fisiologia e ecologia. Além do mais, ela é central para resolver problemas práticos, os quais afetam as pessoas, por exemplo, identificar vetores de doenças e pragas, os quais têm relação direta com nossas vidas. Sendo a espécie vista como uma das unidades fundamentais da biodiversidade e conservação, é importante que nós saibamos o que queremos dizer aos nos referirmos a elas.


Referência e sugestões:

Cracraft J (1989) Species as entities of biological theory. In What the philosophy of biology is. Springer, Dordrecht, pp. 31-52.

De Queiroz K (1998) The general lineage concept of species, species criteria, and the process of speciation: A conceptual unification and terminological recommendations In: Endless forms: Species and speciation, New York: Oxford University Press, pp 57-75.

De Queiroz K (2007) Species concepts and species delimitation. Systematic biology, 56(6), 879-886.

Gava A and Freitas TRO (2003) Inter and intra-specific hybridization in tuco-tucos (Ctenomys) from Brazilian Coastal Plains (Rodentia, Ctenomyidae). Genetica 119:11-17.

Freitas TRO (2006) Cytogenetics Status of Four Ctenomys Species in the South of Brazil. Genetica, 126: 227.

Gava A, Freitas TR (2003) Inter and intra-specific hybridization in tuco-tucos (Ctenomys) from Brazilian coastal plains (Rodentia: Ctenomyidae). Genetica, 119(1), 11-17.

Ghiselin MT (1987) Species concepts, individuality, and objectivity. Biology and Philosophy, 2(2), 127-143.

Hey J (2001) The mind of the species problem. Trends in Ecology & Evolution, 16(7), 326-329.

Maclaurin J, Sterelny K (2008) What is biodiversity?. University of Chicago Press.

Mayden RL (1997) A hierarchy of species concepts: the denouement in the saga of the species problem.

Mayr E (1982) The Growth of Biological Thought: Diversity, evolution, and inheritance. Harvard University Press.

Wilkins JS (2009) Species: a history of the idea, Species and Systematics. Berkeley: University of California Press.


* Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2016) e mestranda no Programa de Pós Graduação em Genética e Biologia Molecular da UFRGS, na área de Evolução biológica e Seleção sexual.

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