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O Retorno de Doenças Antigas e o Aparecimento de Novas


Richard Lewontin & Richard Levins

Capitalism, Nature, Socialism, 7 (2): 103-107, 1996.

Tradução por Claudio Ricardo Martins dos Reis*

Uma geração atrás, a posição de senso comum dos líderes de saúde pública era de que as doenças infecciosas haviam sido derrotadas em princípio e estavam deixando de ser uma causa importante de doença e mortalidade. Os estudantes de medicina foram instruídos a evitar a especialização em doenças infecciosas porque esse era um campo em extinção. De fato, o Departamento de Epidemiologia da Escola de Saúde Pública de Harvard se especializou em câncer e doenças cardíacas.

Eles estavam errados. Em 1961, a sétima pandemia de cólera atingiu a Indonésia; em 1970, chegou à África e, nos anos 90, à América do Sul. Depois de recuar por alguns anos, a malária voltou com força A tuberculose aumentou e se tornou a principal causa de morte em muitas partes do mundo. Em 1976, a doença dos legionários apareceu em uma convenção da Legião Americana na Filadélfia. A doença de Lyme se espalhou no nordeste dos EUA. A criptosporidiose afetou 400.000 pessoas em Milwaukee. A síndrome do choque tóxico, a síndrome da fadiga crônica, a febre de Lassa, o Ebola, a febre hemorrágica da Venezuela, a febre hemorrágica da Bolívia, a febre hemorrágica da Crimeia-Congo, a febre hemorrágica da Argentina, a hantavirose e, é claro, a SIDA (AIDS), nos confrontaram com novas doenças. A doutrina da transição epidemiológica estava terrivelmente errada¹. As doenças infecciosas são um grande problema de saúde em todo o globo.

¹ Nota do tradutor: “A transição epidemiológica é a proposição de que, se um país se desenvolve, doenças infecciosas declinam e são substituídas por doenças crônicas como o principal problema de saúde.” Lewontin & Levins (2007, p. 377).

Por que a saúde pública foi pega tão de surpresa?

Parte da resposta é que a ciência, geralmente, está errada, porque estudamos o desconhecido fazendo-nos acreditar que é como o conhecido. Frequentemente é assim, o que torna a ciência possível, mas às vezes não o é, o que torna a ciência ainda mais necessária e a surpresa inevitável. Os físicos, no final da década de 1930, lamentavam o fim da física atômica. Todas as partículas fundamentais já eram conhecidas – o elétron, o nêutron e o próton haviam sido medidos. O que mais havia? Depois vieram os neutrinos, pósitrons, mésons, antimatéria, quarks e cordas. Em cada uma dessas vezes, o fim foi declarado. Mas a explicação exige algo mais do que o fato óbvio de que a ciência, frequentemente, estará errada. Antes de podermos responder por que a saúde pública foi pega de surpresa, precisamos perguntar: O que fez a ideia da transição epidemiológica parecer tão plausível aos teóricos e profissionais da saúde?

Havia três argumentos principais:

1. Desde que as causas da mortalidade foram sistematicamente registradas pela primeira vez, há quase cento e cinquenta anos, as doenças infecciosas estiveram em declínio como causa de morte na Europa e na América do Norte. A varíola estava quase sumindo, a tuberculose estava diminuindo, a malária fora expulsa da Europa e dos Estados Unidos, a poliomielite havia se tornado uma raridade, e os males da difteria e da coqueluche estavam em seu fim. As mulheres não estavam mais morrendo de tétano após o parto. Basta olhar para o futuro: as outras doenças deveriam seguir o mesmo caminho.

2. Tínhamos cada vez melhores “armas” na “guerra” contra doenças: melhores testes laboratoriais para detectá-las, remédios, antibióticos e vacinas. A tecnologia estava avançando, enquanto os micróbios tinham que confiar em suas únicas maneiras de responder – por mutações. Claro que estávamos vencendo.

3. O mundo inteiro estava se desenvolvendo. Em breve, todos os países seriam fartos o suficiente para usar as tecnologias avançadas e adquirir um quadro moderno da saúde.

Estes argumentos se mostraram tanto pouco plausíveis quanto errados. O problema é que, embora eles pareçam argumentos históricos, carecem completamente de uma compreensão da contingência histórica ou do modo como as mudanças históricas alteram as condições para as mudanças futuras.

Primeiro, os profissionais de saúde pública viam a partir de um horizonte temporal muito curto. Se, em vez de contar apenas o último século ou dois, tivessem olhado para um período mais longo da história humana, teriam visto uma imagem diferente. A primeira erupção confirmada de praga – a Peste Negra – atingiu a Europa na época do imperador Justiniano, quando o Império Romano estava em declínio. A segunda praga se espalhou na Europa do século XIV, durante a crise do feudalismo. A relação dos eventos econômicos e políticos com esses surtos não é clara, mas quando o registro histórico é mais completo, os caminhos causais são mais fáceis de seguir. A grande praga do norte da Itália, no início do século XVII, foi consequência direta da fome e do amplo movimento de exércitos durante as guerras dinásticas do período. E o evento epidemiológico mais devastador que conhecemos acompanhou a conquista europeia das Américas, quando uma combinação de doenças, excesso de trabalho, fome e massacre reduziu a população nativa americana em até 90%. A Revolução Industrial trouxe as terríveis doenças das novas cidades, sobre as quais Engels escreveu, para o caso de Manchester, em seu livro The Condition of the Working Class in England.

Então, antes de alegar que as doenças infecciosas estão em declínio para sempre, devemos afirmar que todas as principais mudanças na sociedade, população, uso da terra, mudança climática, nutrição ou migração também são eventos de saúde pública com seu próprio padrão de doenças. Ondas de conquista europeia espalharam peste, varíola e tuberculose. O desmatamento nos expõe a doenças transmitidas por mosquitos, carrapatos ou roedores. Enormes projetos hidrelétricos e seus canais de irrigação ajudaram a espalhar os caracóis que transportam fascíola hepática e permitem a reprodução de mosquitos. Monoculturas de grãos servem de comida para ratos. Se as corujas, onças e cobras que comem ratos são exterminadas, as populações de ratos explodem em números, com seus próprios reservatórios de doenças. Novos ambientes, como a circulação de água quente e clorada em hotéis, permitem que as bactérias da legionelose prosperem. Essas bactérias são generalistas, normalmente raras porque são um competidor fraco em comparação a outras bactérias, mas tolera o calor melhor do que a maioria e, ara evitar o cloro, pode invadir protozoários maiores, ainda que microscópicos. E, por último, os modernos chuveiros com spray fino fornecem à bactéria gotículas que podem atingir os cantos mais distantes de nossos pulmões.

Em segundo lugar, a saúde pública foi limitada em outro sentido: seu olhar focava apenas nos seres humanos. Mas, se médicos veterinários e patologistas de plantas tivessem sido consultados, novas doenças teriam sido vistas com frequência em outros organismos: a febre suína africana, doença da vaca louca na Inglaterra, vírus do tipo cinomose nos mamíferos do Mar do Norte e do Báltico, o vírus da tristeza nos citros, a doença do mosaico dourado no feijão, a síndrome das folhas amareladas da cana-de-açúcar, o vírus Gemini do tomate e a variedade de doenças que matam as árvores urbanas tornariam óbvio que algo estava errado.

A terceira maneira pela qual a saúde pública foi muito limitada em sua teoria é a seguinte: não prestar atenção real à evolução ou à ecologia das interações das espécies. Os teóricos da saúde pública não perceberam que o parasitismo é um aspecto universal da vida em evolução. Os parasitas geralmente não se dão muito bem quando estão livres em solo ou na água e, portanto, se adaptam aos habitats especiais do interior de outros organismos. Eles (quase) escapam da competição, mas precisam lidar com as demandas parcialmente contraditórias desse novo ambiente: onde obter uma boa refeição, como evitar as defesas do corpo hospedeiro e como encontrar uma saída e chegar a outra pessoa. A evolução subsequente dos parasitas responde ao ambiente interno, às condições externas de transmissão e ao que fazemos para curar ou prevenir a doença. Grandes populações de cultivos, de animais ou de pessoas são novas oportunidades para bactérias, vírus e fungos, e eles continuam tentando.

Um problema profundo é o fracasso em reconhecer a mudança evolutiva que ocorre nos organismos patológicos como uma consequência direta das tentativas de lidar com eles. Os teóricos da saúde pública não consideraram como os agentes infecciosos responderiam à prática médica, embora a resistência aos medicamentos tenha sido relatada desde o final da década de 1940, e os controladores de pragas já conheciam muitos casos de resistência a pesticidas. A fé nas abordagens mágicas para o controle de doenças e o uso generalizado de metáforas militares (“armas na guerra contra ...”; “ataque”; “defesa”; “entrar para matar”) dificultavam o reconhecimento de que essa natureza também é ativa e de que nossos tratamentos necessariamente suscitam algumas respostas.

Finalmente, a expectativa de que o "desenvolvimento" levaria à prosperidade mundial e a grandes aumentos de recursos aplicados à melhoria da saúde é um mito da teoria clássica do desenvolvimento. Durante a Guerra Fria, os desafios à abordagem do Banco Mundial / FMI ao desenvolvimento foram marginalizados como comunistas. No mundo real, de domínio das economias ricas já formadas, as nações pobres obviamente não conseguiram diminuir sua distância com as ricas, e mesmo quando a economia total cresceu, isso não significou que as massas tivessem prosperado ou que mais recursos fossem dedicados à necessidade social.

Mais do que isso, os processos sociais de pobreza e opressão, e as condições reais do comércio mundial, não eram “científicos” o suficiente, pois a ciência “real” lida com micróbios e moléculas. Portanto, um surto de cólera é visto apenas como a chegada de bactérias para muitas pessoas. Mas a cólera vive entre o plâncton ao longo da costa quando não está nas pessoas. O plâncton floresce quando os mares esquentam e quando o escoamento de esgotos e fertilizantes agrícolas alimentam as algas. Os produtos do comércio mundial são transportados em cargueiros que usam água do mar como lastro que é descarregado antes de chegar ao porto, juntamente com os animais que vivem nessa água de lastro. Os pequenos crustáceos comem as algas, os peixes comem os crustáceos e a bactéria da cólera encontra os comedores de peixe. Finalmente, se o sistema de saúde pública de uma nação já foi destruído pelo ajuste estrutural da economia, a explicação completa da epidemia é, em conjunto, a Vibrio cholerae e o Banco Mundial.

Assim, em um nível de explicação, o fracasso da teoria da saúde pública identifica ideias equivocadas e uma visão muito estreita. Mas isso, por sua vez, exige mais explicações. Os médicos que olharam apenas para os últimos 150 anos eram pessoas instruídas. Muitos estudaram os clássicos. Eles sabiam que a história não começou na Europa do século XIX. Mas os tempos anteriores, de alguma forma, não importavam a eles. O rápido desenvolvimento do capitalismo levou a ideias sobre a novidade única de nosso tempo, imortalizada por Henry Ford como “A história é uma besteira”. Eles compartilham o pragmatismo americano (e, em menor medida, europeu), uma impaciência com as teorias (neste caso, evolução e ecologia). Portanto, eles não viam a semelhança de plantas e pessoas como espécies entre espécies. Os ministérios da saúde não conversam com os ministérios da agricultura. As escolas de agricultura são rurais e apoiadas pelo estado, seus alunos geralmente são provenientes de comunidades agrícolas. As escolas de medicina são urbanizadas e geralmente privadas, e seus alunos são da classe média urbana. Eles não confraternizam ou leem os mesmos diários. O pragmatismo de ambos os grupos é reforçado pelo senso de urgência para atender a uma necessidade humana imediata. O desenvolvimento de uma epidemiologia coerente é frustrado pelas falsas dicotomias que permeiam o pensamento de ambas as comunidades: aspectos biológicos/sociais, físicos/psicológicos, acaso/determinismo, hereditariedade/ambiente, infecciosos/crônicos e outros que iremos discutir em outros capítulos.

Outro nível de explicação nos ajudará a entender as barreiras intelectuais que levaram à surpresa epidemiológica. A limitação e o pragmatismo são característicos dos modos dominantes de pensamento no capitalismo, onde o individualismo do homem econômico é um modelo para a autonomia e o isolamento de todos os fenômenos, e onde uma indústria do conhecimento transforma ideias científicas em mercadorias comercializáveis – precisamente as pílulas mágicas que a indústria farmacêutica vende às pessoas. A história de longo prazo da experiência capitalista incentiva essas ideias – que são reforçadas pela estrutura organizacional e econômica da indústria do conhecimento – a criar padrões especiais de insight e ignorância que caracterizam cada campo e tornam inevitáveis ​​suas próprias surpresas particulares.




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*Professor adjunto na Universidade Federal da Bahia (UFBA), laboratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia (LEFHBio). Doutor em Filosofia (UFRGS), mestre em Ecologia (UFRGS) e bacharel em Ciências Biológicas (UFRGS). Tem interesse em Filosofia, História e Sociologia da Ciência, especialmente da Biologia, incluindo a dimensão social do conhecimento científico e o papel apropriado dos valores na produção desse conhecimento. A investiação do seu doutorado envolveu o tema das relações entre ciência e valores, em que defendeu uma posição pluralista e sensível ao contexto.



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