Tradução: Pedro Surreaux
Fonte: https://bit.ly/2sfi3He
Teria existido uma língua neandertal? Antes de tentar responder à pergunta, devo deixar clara minha posição: estou com os neandertais. Como antropólogo que estuda nossos primos evolutivos, tenho visto evidências significativas que sugerem que os neandertais eram criaturas competentes, complexas e sociais. Quanto a suas habilidades cognitivas aparentes, tendo a acreditar que eles possuíam uma linguagem como a nossa.
O problema é que nem eu nem ninguém pode provar: até o momento, não temos evidência de que os neandertais possuíam linguagem escrita. Se havia um idioma, ele teria sido puramente falado. Ao contrário das línguas escritas, línguas faladas não deixam rastros: nossas palavras desaparecem assim que são pronunciadas.
O que está ao alcance dos pesquisadores hoje é a análise de fósseis, artefatos e genes neandertais em busca de traços fisiológicos e cognitivos tidos como necessários para a existência de um sistema linguístico. No entanto, mesmo diante de toda a evidência que temos à disposição, os especialistas chegam a conclusões divergentes: alguns dizem que a capacidade linguística é única à nossa espécie, ao Homo sapiens; outros, defendem que neandertais também possuíam o dom da conversa. Não é por falta de tentativas de explicação que a questão continua em aberto. Trago aqui toda a evidência de que dispomos.
Delimitando a questão
“O debate, na verdade, é sobre a natureza da linguagem”, diz Dan Dedius, um linguista evolutivo (que também está do lado dos neandertais).
Parte da razão pela qual cientistas discordam sobre a existência de uma língua neandertal é o fato de que existem diferentes definições de língua e de linguagem. Sem nos aprofundarmos muito em debates acadêmicos sobre a natureza da linguagem, digamos simplesmente que há teorias amplas e estreitas para explicar sua constituição.
Uma visão ampla define a linguagem como um sistema comunicativo em que símbolos arbitrários (normalmente sons) possuem significados específicos, mas não fixos nem finitos. Palavras podem ser inventadas, aprendidas, alteradas e combinadas para expressar qualquer coisa em que sejamos capazes de pensar.
Definições estreitas focam na sintaxe e na recursividade, propriedades estruturais compartilhadas por todas as línguas humanas. Tais propriedades dizem respeito ao conjunto de regras que guiam o modo como frases podem ser formuladas em uma determinada língua, e pressupõe-se que tais regras são intrínsecas ao cérebro humano. Segundo essa visão, a linguagem é um “mecanismo cognitivo computacional que gira em torno de estruturas sintáticas hierárquicas”, nas palavras do biólogo Johan Bolhuis e seus colegas.
Baseado nesse tipo de evidência, a maioria dos pesquisadores hoje concorda que os neandertais eram capazes de emitir e escutar vocalizações complexas. As implicações, no entanto, ainda geram discordância. Enquanto alguns consideram que tais evidências apontam diretamente para a presença da linguagem em neandertais, outros propõem que os traços em questão podem ter surgido por razões diversas, como para o canto. Neandertais podem não ter possuído as habilidades cognitivas para linguagem, mas desenvolveram tais traços anatômicos para vocalizações musicais, que visavam atrair parceiros ou punir indivíduos mais jovens.
Para chegar a uma conclusão sobre a capacidade cerebral dos neandertais para produzir e perceber linguagem, pesquisadores normalmente baseiam-se em indícios arqueológicos — por exemplo, artefatos cuja confecção demanda os mesmos pré-requisitos cognitivos que a produção e o processamento linguísticos: organização hierárquica e pensamento simbólico abstrato. O último sendo tão necessário para a codificação de sons e significados quanto para a produção de artefatos com contas e pinturas rupestres.
Então, nos perguntamos: os neandertais eram mesmo capazes de produzir essas coisas? A resposta é talvez. Já foram atestados alguns casos de ornamentos e pinturas neandertais. São casos tão raros, no entanto, que sua autoria e antiguidade são frequentemente questionadas por pesquisadores. Ainda assim, é possível que os neandertais tenham sido simbólicos de outras formas. Em muitos sítios arqueológicos, por exemplo, foram encontrados ossos de penas de aves de rapina cortadas sistematicamente. Isso poderia indicar que os neandertais utilizavam penas (as quais não foram preservadas) como ornamentos, atribuindo a elas significado simbólico.
O que o DNA tem a dizer
Os últimos dados jogados na mistura vêm de amostras de DNA antigo (aDNA). “É, ao mesmo tempo, o mais convincente e o de mais difícil interpretação”, diz Dediu, cientista do laboratório Dynamique du Langage, em Lyon, França.
O aspecto convincente é que genomas antigos mostraram que neandertais e Homo sapiens cruzaram em diversos períodos durante os últimos 200.000 anos. A descoberta de que os dois grupos eram biológica e comportamentalmente semelhantes o suficiente para gerar descendentes levou muitos antropólogos a acreditar que os neandertais possuíam capacidade para a linguagem.
O que é mais difícil de determinar é se as diferenças genéticas entre nós e eles tiveram algum impacto nas habilidades linguísticas. “Não entendemos muito bem a genética das habilidades cognitivas, a genética da fala e da linguagem”, explica Dediu.
Geneticistas podem comparar os genomas de neandertais e humanos modernos letra por letra, gene por gene, mas não sabemos como esse código se traduz em habilidade linguística. Alguns genes, como o FOXP2, sem dúvidas estão envolvidos, uma vez que pessoas com versões alteradas desse gene apresentam desvios linguísticos. Os genes identificados até o momento que estão mais claramente associados à linguagem possuem versões correspondentes no neandertal e no Homo sapiens. No entanto, algumas diferenças foram apontadas em relação ao DNA regulador, que controla onde (em que células), quando (durante o desenvolvimento) e como os genes putativos são ativados. Em resumo, o DNA pode trazer respostas para a questão da habilidade linguística dos neandertais, mas ainda não sabemos como lê-las.
A questão da linguagem neandertal continua em aberto. Se eles não poussíam tal capacidade, ela pode ser única ao Homo sapiens. Do contrário, é provável que a o fenômeno da linguagem tenha estado presente desde há pelo menos 500.000 anos, a época de nosso ancestral comum.
Nas palavras de Sverker Johansson, “Houve uma época em que nossos ancestrais não podiam falar, hoje, todos podemos”. Determinar as capacidades linguísticas dos neandertais nos ajudará a entender quando e como emergiram nossas incríveis capacidades comunicativas.
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