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Corpo humano e os vestígios da evolução: um breve comentário

Lucas Henriques Viscardi*


É muito comum em meio ao ensino evolutivo, nas escolas ou mesmo durante palestras de divulgação científica, que o público não consiga ter uma visão da evolução no seu cotidiano. Essa situação influencia na dificuldade de sabermos a finalidade do conhecimento evolutivo ou mesmo compreendermos que somos um produto da evolução, assim como todas as outras espécies do planeta. Uma forma de ultrapassar estas barreiras é olhar para nós mesmos e buscarmos evidências deste processo.


Aproveitando que estas a ler esta coluna, tome como experimento esticar suas mãos com as palmas voltadas para cima e pressione o seu dedo mínimo contra o seu polegar e observe se há uma projeção de um tendão no seu punho. Existe uma chance de aproximadamente 26,5% de você, como brasileiro, não apresentar o músculo Palmaris longus no seu corpo, podendo ser esta ausência tanto bilateral (punho esquerdo e direito) ou unilateral (Ioannis et al. 2015). Estes números variam dependendo da sua etnia, mas não se preocupe com isso, pois essa ausência em nada interfere na sua qualidade de vida.



Mas não pense que somos as únicas espécies que apresentam esta variação. Nossos primos primatas mais próximos, chimpanzés e gorilas, também apresentam este quadro (Aversi-Ferreira et al. 2014). A explicação é muito simples. Estudos observaram que este músculo é muito mais desenvolvido em primatas que vivem a maior parte do tempo sobre a copa das árvores (primatas arborícolas), como lêmures e macacos do Novo Mundo, utilizando seus braços para se deslocar entre galhos e escalar do que em primatas terrestres, como nós, gorilas e os chimpanzés. O mesmo também é observado para o músculo Plantaris, um músculo longilíneo que fica abaixo dos músculos mais superficiais da panturrilha, com função preênsil em primatas arbóreos (Vereecke et al. 2005). Dessa forma, ao longo dos aproximados 40 milhões de anos que separam estes primatas, se houvessem mutações que levassem à perda deste músculo em algum indivíduo da linhagem dos primatas terrestres, seu sucesso reprodutivo não seria afetado, fazendo com que o fenótipo observado acabe por ser relativamente frequente. Hoje, estes músculos podem ser utilizados em aplicações cirúrgicas para reconstruir alguns tendões em caso de rompimento dos mesmos em meio a acidentes, visto que sua remoção em nada vai impactar na saúde do paciente (Iqbal et al. 2015).


Olhando-se no espelho, observe o ângulo dos seus joelhos. Eles são levemente inclinados para o centro do seu corpo, correto? A evolução do bipedismo em humanos impactou na forma que nossos joelhos se curvam para dentro, dando a angulação clássica do nosso fêmur. Sem esta angulação e o formato plano da epífise proximal da nossa tíbia, não poderíamos “trancar” nossa postura ereta, gastando muita energia mesmo que parados (Lovejoy 2007). Ainda nesta parte inferior, saiba que a evolução do bipedalismo também contextualiza-se com o desenvolvimento do músculo Gluteus maximus, pouco desenvolvido em outros primatas, para poder sustentar o peso vertical do corpo durante a marcha em alta velocidade (Lieberman et al. 2006). Além dos reforços sobre os membros inferiores, a nossa coluna também passou por mudanças para sustentar o peso de nosso corpo, onde quatro curvas são observadas ao longo dela, com cifoses observadas na regiões torácica e sacral, e angulações de lordoses na cervical e lombar (Lovejoy 2007).


Alguns ainda podem ter vivenciado uma experiência muito desagradável. Passar por um dor e sucessiva cirurgia para remover o apêndice. Você poderia se perguntar por que há algo tão pequeno no seu corpo e que serviria apenas para causar eventuais problemas. Todavia, o apêndice é um vestígio de uma região do intestino grosso conhecido como caecum (ceco), responsável em ruminantes e primatas de alimentação mais baseada em vegetais pela fermentação de alimentos fibrosos (Mann 2007). Apesar de hoje sermos onívoros, nossos ancestrais passaram por um período de dieta muito rica em alimentos de origem animal por volta de 2 milhões de anos atrás, bem como durante períodos das grandes glaciações. Essa estratégia evolutiva, acabou por impactar em uma redução no tamanho do nosso intestino grosso e das câmaras estomacais, e de um alongamento no nosso intestino delgado, onde teremos mais aproveitamento de recursos proteicos de origem animal. Estas mudanças, também nos conduziram a ter um aparato mastigatório mais delicado, onde mutações que levavam à perda de musculatura dos músculos temporal e masseter reduzissem a produção de cadeias pesadas de miosina na formação dos mesmos (Stedman et al. 2004).


Poderíamos escrever um longo texto dando os vários exemplos, pois apenas da linhagem entre humanos e chimpanzés temos mais de 9 milhões de anos de história evolutiva que moldaram nosso corpo. Porém, aqui queremos apenas apresentar e convidar o leitor a se interessar pelo estudo darwinista. Então, lembre-se que para encontrar respostas biologicamente científicas de onde viemos basta olharmos com atenção para nós mesmos. E claro, quanto mais conhecemos, mais perguntas surgirão.


Referências


Aversi-Ferreira RAGMF, Bretas RV, Maior RS, Davaasuren M, Paraguassu-Chaves CA, Nishijo H and Aversi-Ferreira TA (2014) Morphometric and statistical analysis of the palmaris longus muscle in human and non-human primates. Biomed Res Int 2014:178906. doi: 10.1155/2014/178906.


Ioannis D, Anastasios K, Konstantinos N, Lazaros K and Georgios N (2015) Palmaris Longus Muscle’s Prevalence in Different Nations and Interesting Anatomical Variations: Review of the Literature. J Clin Med Res 7:825–830. doi: 10.14740/jocmr2243w.


Iqbal S, Iqbal R and Iqbal F (2015) A Bitendinous Palmaris Longus: Aberrant Insertions and Its Clinical Impact - A Case Report. J Clin Diagn Res 9:AD03-AD05. doi: 10.7860/JCDR/2015/12182.5954.


Lieberman DE, Raichlen DA, Pontzer H, Bramble DM and Cutright-Smith E (2006) The human gluteus maximus and its role in running. J Exp Biol 209:2143 LP-2155.


Lovejoy CO (2007) The natural history of human gait and posture. Part 3. The knee. Gait Posture 25:325–341. doi: 10.1016/j.gaitpost.2006.05.001.


Mann, Neil (2007). Meat in the human diet: An anthropological perspective. Nutrition and Dietetics, 64(s4), S102–S107. http://dx.doi.org/10.1111/j.1747-0080.2007.00194.x.


Stedman HH, Kozyak BW, Nelson A, Thesier DM, Su LT, Low DW, Bridges CR, Shrager JB, Minugh-Purvis N and Mitchell M a (2004) Myosin gene mutation correlates with anatomical changes in the human lineage. Nature 428:415–418. doi: 10.1038/nature02358


Vereecke EE, D’Août K, Payne R and Aerts P (2005) Functional analysis of the foot and ankle myology of gibbons and bonobos. J Anat 206:453–476. doi: 10.1111/j.1469-7580.2005.00412.x


*Possui graduação em Arqueologia (Bacharelado) pela Universidade Federal de Rio Grande (FURG) e é mestre em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor pelo Programa de Pós Graduação de Genética e Biologia Molecular - UFRGS. Desenvolve trabalhos nas áreas de Arqueologia (Pré-histórica) e Genética, com ênfase no temas envolvendo evolução do comportamento humano e de outros primatas, considerando tanto aspectos biológicos como culturais. Atualmente cursa bacharelado em Medicina pela Universidade de Caxias do Sul.

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